Emídio Rangel
Jornalismo
26-03-2014

TSF e SIC. As memórias de Emídio Rangel

Em finais da década de 1980, a estação de rádio TSF deu a voz às pessoas comuns e às organizações da sociedade portuguesa e mudou os tempos da informação com o seu jornalismo em direto. E isso contribuiu decisivamente para consolidar e desenvolver a democracia em Portugal, cerca de 15 anos depois da revolução de 25 de Abril de 1974.

Com o trabalho desenvolvido na TSF e na SIC, meios de comunicação de que foi cofundador, o jornalista Emídio Rangel, ficou na história como o homem que mudou a rádio e a televisão em Portugal. E, em certa medida, o jornalismo. Na verdade, a TSF revolucionou a forma de fazer rádio e jornalismo de um modo tão intenso que influenciou também os meios de comunicação escrita da época E a SIC, no início da década de 1990, trouxe a inovação e a irreverência para os ecrãs.

Natural de Angola, onde nasceu em 21 de setembro de 1947, Emídio Rangel estreou-se aos 18 anos aos microfones da rádio. A sua capacidade de inovar, de criar e de motivar equipas e pessoas foi sempre reconhecida por colegas com quem se cruzou.

Emídio Rangel com Alberta Marques Fernandes, o rosto do primeiro serviço de notícias da SIC
Emídio Rangel com Alberta Marques Fernandes, o rosto do primeiro serviço de notícias da SIC na emissão inaugural, em 6 de outubro de 1992

Na passagem dos 40 anos da revolução de 1974, o jornal “i” foi ouvir Emídio Rangel, o fundador da TSF e, mais tarde, da SIC – dois projectos de comunicação que também mudaram Portugal. É uma entrevista de memória que considero um documento importante porque ajudará a fazer a história da rádio e da televisão em Portugal. Eis as passagens mais significativas:

“Eu notava que, [na década de 1970], a rádio em Angola estava mais avançada. Nós já fazíamos reportagens em todo o mundo, e aqui não era normal. Nós íamos com a rádio angolana a todos os sítios onde aconteciam coisas. Para nós as notícias tinham uma dimensão global: a rádio era um mundo que se debruçava sobre todo o planeta. Lembro-me que na rádio do Lubango cobrimos os Jogos Olímpicos de Munique. Aqui não havia essa cultura, nem esses hábitos. O perfil da emissão que produzíamos era completamente diferente.”

“A RDP [Rádio Difusão Portuguesa] não reconhecia a iniciativa das pessoas, era uma estrutura muito pesada, manietada pelos sucessivos governos. Comecei a pensar que Portugal não podia continuar a viver com uma emissora do Estado e outra da Igreja. Era necessário libertar a rádio, fazer um combate para que fosse possível criar novas emissoras. Depois do boom das rádios piratas concorremos a uma frequência e ganhamos uma local. Foi uma batalha que durou mais de seis anos, para conseguirmos que isso fosse possível e termos condições para fazer a TSF.”

“Deram-nos apenas uma frequência local, quando éramos uma emissora que privilegiava a informação. Houve uma clara manipulação política do concurso, aos governos da altura não interessava uma rádio independente do ponto de vista informativo, preferiam outro tipo de projectos menos dedicados a fazer informação. Aqui ganhou o ‘Correio da Manhã’, no Norte ganhou a Lusomundo [Rádio Press]. Decidiram a solução que lhes dava mais tranquilidade e segurança.”

“Nós não aceitámos essas limitações. Passamos a fazer as coisas de uma maneira diferente. Não aceitávamos o "Portugal sentado" da agenda dos outros órgãos de comunicação social. Queríamos dar voz às pessoas. Ter gente dentro das nossas notícias. A informação que havia era uma informação cheia de hierarquias e muito respeitinho: primeiro apareciam as notícias do Presidente da República, depois eram as do primeiro-ministro, e a cadeia alimentar seguia com ministros, secretários de Estado, deputados, presidentes de câmara até aos chefes de repartição. Nós introduzimos uma pequena revolução: abríamos jornais com o que fosse importante. Tanto podíamos abrir com uma greve como com desporto. Isto era para muita gente um crime de lesa-pátria.”

“Sentíamos pressões. Quando passámos a fazer emissões diárias e a nossa voz passou a ter importância, começámos a contar. Até porque depressa passámos a atingir um conjunto de classes informadas e decisivas: a classe média alta, os quadros técnicos, os estudantes do ensino superior. Nada daquilo que fazíamos era indiferente. Tudo causava perturbação. Uma vez soubemos que tinha chegado um barco com sete pessoas negras refugiadas. No porto de Lisboa as entidades oficiais recusavam-se a recebê-los e disseram ao comandante do barco: "faça o senhor o que quiser". Estavam num contentor em condições infra-humanas. Resolvemos fazer a emissão 24 horas sobre 24 horas a partir de lá. Até que eles desistissem de se desresponsabilizar da situação dessas pessoas. Eles deixaram de ser tratados como animais para a passarem a ser tratados como seres humanos.”

“A cobertura do incêndio do Chiado foi porventura outro dos momentos simbólicos do nosso trabalho. O que se pretendia é que nós não emitíssemos em directo. A informação na altura era muito controlada, mas nós dinamitávamos isso, e pelo facto de estarmos em directo as coisas não podiam ser menorizadas, e também obrigava todos os outros operadores a seguirem-nos o exemplo. Isso aconteceu também com o aparecimento da SIC e com o ‘buzinão’ na Ponte 25 de Abril. Caso a informação não governamental não existisse, a repercussão mediática de um enorme acontecimento seria provavelmente muito diferente. Estes directos dinamitavam qualquer controlo informativo. Marcávamos a agenda.”

Emídio Rangel com o jornalista José Alberto Carvalho
Emídio Rangel com José Alberto Carvalho, um dos principais rostos da informação da primeira década da SIC

“Fui convidado pelo Dr. Pinto Balsemão [para dirigir o canal de televisão SIC], e na altura fiz o convite aos meus camaradas da TSF, que me aconselharam a aceitar. Era um novo desafio, mas também poderia ajudar a rádio, porque se eu não estivesse à frente do novo canal a sangria de profissionais podia ser maior. Nós tínhamos o tom certo da informação que se pretendia e qualquer novo operador iria buscar muitos dos nossos jornalistas. Eu próprio fui buscar alguma gente da TSF para o desafio da SIC, mas não foi uma hemorragia, não foi 80% a 90%, com seria previsível.”

“Estudei muito a televisão, por gosto pessoal. Não tinha muito a experiência, mas tinha muitas ideias de como era a televisão e como se devia agir nesse meio. Não era uma pessoa sem experiência. Acresce que tinha a ideia firme do ritmo e daquilo que se tinha de fazer em termos jornalísticos. O convite inicial era para director de informação, mas com a saída da Maria Elisa do projecto assumi também a direcção de programas, em televisão faz sentido abarcar a totalidade das responsabilidades editoriais num meio. Uma televisão não se limita a dar entretenimento nem a informar. As coisas não são totalmente estanques, tem de haver uma lógica comum. Eu tinha uma grande experiência na TSF daquilo que devia ser a mudança da informação na televisão. No fundo a lógica era a mesma: acabar com o Portugal sentado, com a informação burocrática e hierarquizada pelo respeitinho cego. Tínhamos como dever chegar aos locais em que a notícia acontecia: quer fosse uma aldeia, quer fosse uma grande cimeira internacional. Dar visibilidade mediática às pessoas e ao povo. Aproximar a televisão, a sua informação e programação, das pessoas. Na altura só apareciam na televisão as pessoas poderosas. Era necessário democratizar a televisão.”

“Nós queríamos fazer uma televisão que chegasse ao maior número de pessoas, essa era a condição de sobrevivência da SIC. Para atingir a maior parte da população era necessário que não houvesse nenhum complexo elitista em relação ao entretenimento, dar às pessoas aquilo que elas no fundo pretendiam e em termos informativos que fosse uma estação muito criteriosa e rigorosa. Não víamos nenhuma contradição nisso.”

“A SIC podia ter [o ‘Big Brother’] em exclusivo, mas eu considerei que aquele formato não era realizável no modelo da SIC. Nós devíamos ter comprado para pormos na gaveta e ganharmos algum tempo para poder arranjar alguma coisa que pudesse contrabalançar isso. Para mim, o "Big Brother" não era exibível na SIC porque afectaria a credibilidade do resto da estação. Mas os meus argumentos não foram ouvidos pelo Dr. Francisco Balsemão, isso implicava um milhão, mas os accionistas da SIC só viam os dividendos. E essa cegueira levou-nos a largar mão desse expediente e a perder a liderança, com custos acrescidos para os accionistas.”

“[Se voltasse atrás], teria feito exactamente a mesma coisa. Adivinhava-se o sucesso do "Big Brother", mas aquilo era fazer caminho para trás. Quando a SIC começou foi tendo formatos populares, simples e baratos, mas depois foi sempre melhorando de qualidade e complexidade, e quando estava numa fase não se admitia voltar com tudo atrás em termos de relação com o espectador.”

“Considerado em termos globais, acho que, [na comunicação social em Portugal], se conseguiu manter uma informação e um jornalismo televisivo actuante e isento. Onde eu acho que há uma regressão é nos jornais. Menos pluralismo. E há o domínio de uma imprensa sensacionalista que publica coisas sem respeitar o mínimo dos códigos deontológicos. Não olha a meios para atingir fins.”

“Os portugueses têm de estar felizes pelo 25 de Abril. Temos democracia. Podia ser melhor, mas não há caminho sem democracia. Mesmo para melhorarmos muito o que temos. Nos últimos anos há algumas coisas preocupantes, como a falta de respeito total pelas pessoas durante esta crise. Mas o seu combate exige sempre mais democracia e um melhor jornalismo.”

Emídio Rangel, fundador e primeiro diretor da TSF e da SIC, entrevistado por Nuno Ramos de Almeida, jornal “i”, 25-03-2014 :: Texto integral indisponível na edição digital
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